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Introdução

Em 2016 entrou em vigor no Brasil a Lei 13.146/2015, também chamada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) [1] ou Estatuto da Pessoa com Deficiência. A lei é fruto do Projeto de Lei 7.699/2006 e da regulamentação das disposições da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e do seu Protocolo Facultativo (CDPD)[2], tratando-se de uma mudança de paradigma no trato legal das questões concernentes às pessoas com deficiência para o modelo social e de direitos humanos[3].

As alterações da LBI repercutiram em diferentes campos do Direito, em especial, sob o regime de capacidade civil, pois afirmam que a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas[4]. Reafirma, também, a plena capacidade civil para o exercício de direitos sexuais e reprodutivos, assim como os concernentes à família, é dizer, casar ou constituir união estável, ter filhos, adotar, exercer guarda, tutela ou curatela[5]. Assim, a definição de curatela foi definida como medida extraordinária, de natureza protetiva, e que recai sobre os atos e negócios patrimoniais, ficando resguardado o livre exercício de direitos de ordem existencial por parte do curatelado[6].

De acordo com a reforma operada no Código Civil (CC) em virtude do advento da LBI, apenas os menores de dezesseis anos são absolutamente incapazes, enquanto as pessoas maiores de dezoito anos que se enquadrem nas hipóteses legais são relativamente incapazes[7]. Portanto, somente aos relativamente incapazes dá-se um curador, pois os absolutamente incapazes, em virtude do critério etário, estão sujeitos à tutela[8].

Devido às mudanças, seguiu-se uma polêmica entre os civilistas. Manuais tradicionais de Direito Civil opuseram-se às alterações por considerarem o instituto da capacidade civil uma forma de proteção legal e, desde que a declaração de vontade livre é um dos pilares do Direito, conferir alguma capacidade a quem não possa expressá-la os deixaria vulneráveis, ao passo que, no regime anterior, teriam seu discernimento avaliado no processo judicial de definição de curatela, à luz do caso concreto[9]. Alguns autores optaram por uma leitura literal das disposições constantes da LBI e do CC, entendendo ser a pessoa com deficiência plenamente capaz em qualquer caso[10]. Ainda, que a capacidade legal da pessoa com deficiência seria uma hipótese especial, paralela àquela do CC, de modo que a pessoa com deficiência teria capacidade legal irrestrita para atos jurídicos não patrimoniais e restrita para os atos jurídicos patrimoniais[11]. Como resultado, foi proposto junto ao Senado Federal o Projeto de Lei nº 757/2015, de autoria dos senadores Antônio Carlos Valadares (PSB-SE) e Paulo Paim (PT-RS), visando aclarar que a condição de pessoa com deficiência não pode ser associada à presunção de incapacidade e garantindo a qualquer pessoa, seja ela com ou sem deficiência, o apoio necessário ao exercício dos atos da vida civil[12].

Considerando a suscetibilidade de pessoas com deficiência intelectual terem sua capacidade questionada e, ainda, que seu desenvolvimento não é unicamente determinado por sua especificidade e vai depender da exposição adequada a estímulos, das relações sociais entabuladas e existência de barreiras, dos aprendizados escolarizados, sistematizados ou não, essa pesquisa teve por objetivo compreender a maneira pela qual se dá a construção de sentido em torno da atribuição de (in)capacidade civil às pessoas com deficiência intelectual no curso do processo judicial de definição de curatela, tendo como campo duas das Varas de Órfãos e Sucessões da Comarca da Capital do Rio de Janeiro.

As reflexões ora apresentadas são parte da dissertação de mestrado intitulada “O significado da (in)capacidade de pessoas com deficiência intelectual – uma questão de biopoder”, defendida em maio/2018 junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Ali as análises foram conduzidas a partir do referencial teórico de Michael Foucault e o conceito de biopoder[13]. Neste artigo nos atemos ao delineamento legal da capacidade civil e apresentamos os resultados objetivos da pesquisa empírica, no intuito de contribuir com o debate e amadurecimento da promoção de direitos das pessoas com deficiência intelectual.

Capacidade civil e curatela

Capacidade civil, segundo Silva Pereira (2017), consiste na aptidão para tornar-se titular de direitos na ordem civil, dividindo-se em capacidade de direito ou gozo e capacidade de fato ou exercício. A capacidade de direito corresponde à condição de sujeito de direito e, portanto, recai sobre todas as pessoas, incondicionalmente, com o que está identificada com a personalidade[14]. Já a capacidade de fato refere-se à prática de atos da vida civil de maneira autonôma e independente, implicando em assumir obrigações e responsabilidades.

Incapacidade civil, de acordo com o mesmo autor, é o oposto da capacidade de fato ou exercício. Trata-se da restrição legal à realização de atos e negócios jurídicos e se divide em incapacidade absoluta e incapacidade relativa. O sujeito absolutamente incapaz precisa ser representado por outrem na prática de atos ou negócios jurídicos, formalidade que, em não sendo respeitada, provoca a nulidade do ato[15]. O relativamente incapaz depende da assistência de um agente considerado capaz para celebrar atos ou negócios jurídicos, sem o que o ato pode vir a ser anulado[16].

Comentando o Código Civil 1916 (CC 1916), Dantas (1949) afirmava que a incapacidade civil é o reconhecimento, pelo Direito, de um fato natural, i.e., a insuficiência da vontade. Segundo essa definição, a incapacidade seria algo dado, para o qual o Direito teria de se curvar, prevendo consequências e efeitos. Na concepção de Diniz (2018), tendo por objeto de análise o Código Civil 2002 (CC 2002), a incapacidade civil protegeria, de forma graduada, os que são portadores de uma deficiência jurídica apreciável. Para Silva Pereira (2002 e 2017), quer analisando o CC 1916 ou o CC 2002, toda incapacidade advém da lei, e destaca que a capacidade é a regra, a incapacidade exceção.

De fato, a incapacidade civil não é presumida e sempre dependeu de declaração judicial, através do processo de definição de curatela ou interdição[17]. A plena capacidade civil de pessoas com deficiência intelectual sempre inspirou dúvida, em virtude de poderem ser enquadradas nas hipóteses legais. O CC 1916 incluía no rol dos absolutamentes incapazes os chamados loucos de todo gênero[18], acompanhando a sintomatologia das teorias psquiátricas da época[19]. Da mesma forma, o CC 2002[20] mencionava expressamente como causa de incapacidade absoluta ou relativa enfermidade ou deficiência mental, associando-as a ausência ou redução do discernimento. Ainda, falava de excepcionais e desenvolvimento mental completo, o primeiro termo comumente usado, então, para se referir à pessoa com Síndrome de Down.

Como se observa, o fundamento da capacidade civil na legislação brasileira se apoiava no saber médico, afinal, somente um médico-psiquiatra poderia afirmar se um indivíduo era louco, enfermo ou falar de seu desenvolvimento mental. Havia, portanto, correspondência entre capacidade mental e capacidade legal, de modo que, ausente uma, também faltaria ao agente a outra. Como explica Rosenvald (2016, p.96), a fórmula da lei civil era motivada em determinado modo de ser ou de estar: ser uma pessoa com deficiência ou apresentar déficit cognitivo; estar em um estado patológico ou de enfermidade.

Este panorama somente vem a ser modificado com a CDPD e a LBI, ao reconhecerem o direito das pessoas com deficiência ao exercício da capacidade legal, como forma de igual consideração perante a lei[21] e não-discriminação. Na perspectiva de direitos humanos norteadora da CDPD, capacidade legal (legal agency) diz respeito ao estatuto de cidadão e reconhecimento sociopolítico perante a comunidade, repercutindo sobre a participação na vida pública e política. A capacidade mental, por sua vez, tem relação com as habilidades necessárias para a tomada de decisões e afeta o exercício de direitos e deveres. A aferição da capacidade mental está subsumida a fatores de ordem pessoal, contextual e epistêmicos. Logo, tem em conta: as especificidades do indivíduo, razão por que varia de uma pessoa para outra; a configuração ambiental, social, política e cultural de uma comunidade; os saberes ativados na avaliação dessa capacidade (Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência, 2014, p.4-5).

Bezerra Menezes (2015, p. 06) identifica como princípios cardeais da CDPD o in dubio pro capacitas e a intervenção mínima, ambos como reconhecimento de que a “(…) autonomia, substrato material da capacidade de agir, constitui uma necessidade humana da qual decorrem vários direitos.” Assim, a regra seria o reconhecimento da capacidade plena das pessoas com deficiência e a menor interferência possível nos atos de vontade, cabendo a cada Estado eleger mecanismos de apoio e salvaguardas que garantissem o gozo da capacidade legal.

De acordo com Valença Ferraz e Salomão Leite (2015), a CDPD consagrou o modelo de assistência, segundo o qual a pessoa com deficiência detém o controle de sua vida e se mantém no centro da tomada de decisões, sendo admissível que seja auxiliada por outrem quando necessário, sobretudo em se tratando de pessoas com deficiência intelectual. Com base no modelo social e de direitos humanos, devem ser previstos meios para que possam, da maneira mais ativa possível, expressar e ter suas vontades respeitadas, sendo assistidas por terceiros, não para que estes as representem, mas auxiliem, tirem dúvidas e prestem suporte nas situações que envolvam tomada de decisão. Para os referidos autores, a capacidade civil esteve historicamente ligada ao modelo de substituição da vontade, no qual nomeia-se um terceiro para agir em nome do incapaz e defender seus interesses, pressupondo a falta de autonomia do incapaz e seu não reconhecimento enquanto agente moral.

No mesmo sentido, Bezerra de Menezes (2016, p.608) afirma que a CDPD destaca o o reconhecimento da dignidade da condição humana e ressalta a concepção de que toda pessoa é considerada um sujeito moral, com liberdade de realizar escolhas, participar dos processos sociais como sujeito no discurso moral, e com liberdade de desenvolver e colocar em prática seu singular projeto de vida.

Discorrendo sobre a autonomia e a dignidade de pessoas com deficiência intelectual severa ou extrema, Barbosa-Fohrmann (2013, p.92) expõe o fundamento pelo qual devem estar incluídos no conceito de pessoa moral de Kant, qual seja a potencialidade do uso da razão ou do intelecto. Em sua leitura, Kant faz oposição entre uma natureza humana racional em face de uma natureza não-humana e não-racional. Logo, o reconhecimento da dignidade não dependeria de que o agente efetivamente se utilizasse do raciocínio, o que lhe conferiria autonomia potencial, colocando-o numa situação de igualdade frente a seus pares.

Ante uma perspectiva de direitos humanos, a capacidade civil não deve mais ser compreendida segundo a dialética binária do capaz/incapaz, que as torna polos autoexcludentes. Diferentemente, a capacidade/incapacidade deve ser lida segundo gradações, para as quais vão se definindo apoios. Foi justamente com o propósito de ampliar o suporte para o exercício de direitos e a prática de atos da vida civil que a LBI introduziu no Código Civil o instituto da tomada de decisão apoiada[22]. Confirmando a adoção ao modelo de assistência, a medida possibilita sejam eleitas pessoas de confiança para o aconselhamento na tomada de decisões, sem que disso decorra a perda da capacidade legal. Em que pese a lei civil se refira expressamente à pessoa com deficiência, a medida pode ser manejada por qualquer pessoa que se reconheça vulnerável, como por exemplo, idosos ou pessoas em situações de estresse ou estresse pós-traumático etc. (Menezes, 2016, p.618-619). Infelizmente, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça, ainda são poucas as ações de tomada de decisão apoiada, prevalecendo o ajuizamento de ações para definição de curatela[23].

Metodologia

A pesquisa empírica teve como campo duas das Varas de Órfãos e Sucessões da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, as quais serão designadas à frente por ‘Vara A’ e ‘Vara B’. Ao todo, a Comarca da Capital dispõe de nove Varas dessa competência e obtivemos autorização para pesquisar em quatro delas, optando pela redução do âmbito de coleta de dados por questões de tempo e logística. De acordo com orientação verbal colhida junto ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a autorização para a realização da pesquisa acadêmica deveria ser dirigida diretamente ao magistrado titular de cada Vara, cabendo a ele o aceite ou recusa. Apenas os juízes com quem pudemos conversar pessoalmente e explicar os propósitos da pesquisa autorizaram o acesso aos autos processuais. Aqueles que o negaram, comunicaram através de seus secretários, sem dar maiores explicações.

A pesquisa foi realizada no período de 26/06/2017 a 28/07/2017, tendo por objeto autos físicos de processos judiciais de definição de curatela ou interdição[24] que tramitavam nas Varas no período da pesquisa. Os processos já sentenciados tramitavam por diferentes motivos, tais como substituição de curatela, para alienação ou aquisição de bens do interdito, para informar incidentes a respeito do interdito ou aguardavam ao cumprimento de formalidades, como a expedição de editais ou outras providências das partes. Não tivemos acesso aos autos de processos eletrônicos ajuizados entre os anos de 2016 e 2017, porque os processos de interdição tramitam em segredo de justiça e não são abertos à consulta pública, o que demandaria autorização de acesso ao sistema. A consulta aos documentos foi realizada nas próprias serventias, onde foi franqueado espaço para a pesquisadora junto aos servidores da Vara.

Examinamos 53 documentos, 20 da Vara A e 33 da Vara B. O critério de seleção considerou a definição atribuída ao interditando no laudo médico que acompanhava a petição inicial, assim como a conclusão do laudo pericial atestando ou não a deficiência intelectual. Os autos processuais examinados foram ajuizados entre os anos de 1971 e 2015: os 6 mais antigos em 1971, 1975, 1979, 1980, 1983, 1985; os 26 mais recentes foram distribuídos entre 2011 e 2015; 11 deles datavam da primeira década do século XXI; e 10 deles década de 90 do século XX.

A técnica utilizada para levantamento dos dados foi a elaboração de relatório para cada qual dos autos. No exame dos documentos, atentamos aos seguintes itens: qual a definição atribuída ao interditando no laudo médico que acompanhava a petição inicial; qual a motivação do pedido de curatela; se o interditando possuía bens ou direitos; qual o parentesco do requerente em relação ao interditando; idade do interditando no momento do ajuizamento da ação; curto resumo de sua história de vida; data da citação e eventuais comentários do Oficial de Justiça que cumpriu o mandado; data da audiência de impressão pessoal e principais fatos nela ocorridos; pontos destacados pelo perito na elaboração do laudo pericial; intervenção do Ministério Público (MP) no procedimento; se funcionou curador especial; resumo da sentença.

Para melhor apreciação e isenção na análise dos dados coletados, utilizou-se a metodologia de triangulação quali-quantitativa na tabulação do número de sentenças prolatadas antes e depois da LBI, em função da declaração de incapacidade civil absoluta, de incapacidade relativa ou de improcedência do pedido. Também tabulamos a conclusão do laudo pericial quanto ao diagnóstico atribuído ao interditando e a concordância dos atores judiciais a esses laudos. Dos documentos pesquisados, apenas 04 ainda não haviam sido sentenciados no momento da pesquisa e 1 fora extinto sem resolução do mérito por falta de movimentação pelas partes, razão por que não foram computados na elaboração das tabelas.

Resultados

Os autos dos processos de interdição pesquisados se estruturavam em torno das noções de doença e deficiência, o que pode ser percebido através dos documentos que os compunham e que pareciam tentar reconstruir a história de deficiência e incapacidade dos interditandos. Assim, era possível depreender a trajetória de socialização diferenciada porque passaram, em sua maioria, relatos de pouco tempo de escolarização em escola regular, encaminhamento à Educação Especial, sucessivos exames e acompanhamento médico desde a infância, ausência de vida social ou convívio coletivo após o ingresso na adolescência ou durante a vida adulta, vínculos afetivos restritos ao núcleo familiar, ausência de ocupação em atividade profissional ou em tarefas domésticas, dependência para vestir ou fazer higiene, falta de autonomia para fazer as próprias escolhas etc.

A peça inaugural do processo, a petição inicial, descrevia atrasos no desenvolvimento, dificuldades de aprendizagem, condição de dependência e falta de autonomia do interditando, como a apontar que a incapacidade sempre esteve presente. A motivação dos pedidos comumente era a existência de bens em inventário ou a necessidade de gerenciamento de pensão de natureza previdenciária ou assistencial[25]. Além disso, a inicial sempre era acompanhada por um laudo médico atestando a condição de deficiência intelectual.

Da mesma forma, o laudo pericial de natureza médico-psiquiátrica, cuja realização no curso do processo é obrigatória[26], apresentava a trajetória de vida diferenciada dos interditandos. A sessão denominada anamnese narrava quando foi percebida a deficiência e os desdobramentos de tal fato. Nos antecedentes familiares eram questionados dados para constituir o corpo ampliado[27]. Nos antecedentes pessoais, psicossociais ou história da doença era relatada a infância, escolarização, relações afetivas e sociais, preferências, autonomia nos cuidados pessoais e vida adulta. As informações eram colhidas em entrevista com o próprio interditando ou com um seu familiar. No laudo também era descrito como o interditando se apresentava ao exame, relatando sua roupa, aparência e ânimo, bem como suas respostas ao exame psíquico, em que eram avaliadas competências relacionadas a noções espaço-temporais, cálculos matemáticos e monetários simples, capacidade de abstração, essa aferida a partir da compreensão e interpretação de ditos populares. A conclusão do laudo indicava o diagnóstico, muitas vezes empregando os termos retardo mental ou oligofrenia, conforme a Classificação Internacional de Doenças (CID) dispunha à época. A deficiência intelectual era explicada como transtorno permanente, incurável, não passível de melhora mediante tratamento especializado, no qual não havia intervalo lúcido. Todas as vezes que os peritos diagnosticaram deficiência intelectual, entenderam pela incapacidade civil, ou seja, que o interditando não conseguia reger sua pessoa e bens.

Tabela 1

Conclusão do laudo pericial (48 documentos)

Conclusão do laudo pericial (48 documentos)
Fonte: Elaborado pela autora

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O laudo pericial continha, ainda, respostas aos quesitos elaborados pelo Juízo ou pelo MP. Os quesitos apresentados pelos atores judiciários mais pareciam estar investigando a existência de uma anomalia, haja vista questionarem a respeito de moléstias, patologias, sintomatologia, existência de cura, tratamento e reversibilidade da doença, intervalos de lucidez, além de CID. Também era questionado ao perito sobre a capacidade do interditando para prática de atos e negócios jurídicos e se era possível a interdição parcial.

Mesmo após o advento da LBI, os quesitos continuaram a usar termos ligados ao vocabulário médico. Porém, passaram a ser mais específicos em questionar do interditando a compreensão sobre o sentido e alcance de atos de natureza negocial, perquirindo sua capacidade para decidir sobre valores, para compreender fatos, alternativas, se autodeterminar de acordo com uma informação obtida e outros. Também indagam a autopercepção do interditando sobre si e sobre as limitações decorrentes da deficiência, se pode trabalhar, se compreende o cenário político etc.

Tabela 2

Concordância ao laudo pericial (48 documentos)

Concordância ao laudo pericial (48 documentos)
Fonte: Elaborado pela autora

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A concordância aos termos do laudo foi praticamente unânime, tendo havido somente um caso, na Vara A, em que o MP apresentou objeção, em virtude de a perícia ter sido realizada em audiência. Por seu turno, as sentenças foram julgadas tomando como fundamento principal a conclusão do laudo pericial, remetendo, ainda, aos documentos trazidos com a inicial e a audiência realizada no curso do procedimento, sem fazer maiores considerações sobre as especificidades dos interditos ou sua capacidade para praticar atos jurídicos simples ou complexos.

Tabela 3

Sentenças em ação de interdição com resolução do mérito (48 documentos)

Sentenças em ação de interdição com resolução do mérito (48 documentos)
Fonte: Elaborado pela autora

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Discussão

A interdição consta no Código de Processo Civil dentre os procedimentos de jurisdição voluntária, i.e., onde não há conflito de interesses[28]. E não deixa de ser curiosa a determinação legal, porque a definição de curatela ou interdição é medida gravosa, que retira do indivíduo a possibilidade de gestão patrimonial e o deixa na dependência de outrem, sendo certo que, antes das alterações da LBI, provocava sérias repercussões sobre o exercício de direitos de caráter existencial.

A pesquisa nos permitiu observar a forte influência do laudo médico-psiquiátrico pericial na declaração judicial de incapacidade civil, como evidencia a correlação entre as tabelas 1 e 3. Daí o mesmo quantitativo de diagnósticos de deficiência intelectual corresponder ao número de sentenças de procedência do pedido de definição da curatela, declarando a incapacidade civil.

É possível afirmar que o laudo pericial foi a peça central dos documentos pesquisados, pois serviu de base para que o MP opinasse favoravelmente aos pedidos, assim como foi invocado pelos juízes como fundamento de suas sentenças. Os atores judiciários não ousaram a ele se opor, nem para discutir seus termos, nem para solicitar esclarecimentos ou complementação, como aponta a tabela 2. Além disso, com a vigência do Código de Processo Civil de 2015, paralelamente à LBI, foi prevista a possibilidade de realização de perícia elaborada por equipe multidisciplinar[29],[30].

É importante destacar que o julgador não fica vinculado às conclusões do perito e pode buscar nos autos elementos para formar seu livre convencimento motivado[31], ou mesmo determinar investigações mais aprofundadas[32], tal como a elaboração de estudo social[33], no intuito de se certificar acerca da efetiva incapacidade civil integral dos interditandos.

Inclusive, no curso do procedimento é realizada uma audiência[34], denominada em ambas as Varas A e B de audiência de impressão pessoal, cujo objetivo é permitir um contato direto entre magistrado, MP e interditando. Nesta ocasião, são formuladas algumas perguntas, tais como: nome completo; nome dos pais e irmãos, se houver; preferências e gostos, como time de futebol, programas de TV que assiste etc.; atividades que realiza; dia, mês e ano corrente; nome do presidente ou de outras autoridades em nível municipal ou estadual. Porém, mesmo nas situações em que o interditando respondeu satisfatoriamente às perguntas formuladas pelo juiz em audiência, se expressava bem verbalmente ou era alfabetizado e escolarizado, ainda assim a fórmula atribuída pelo perito não se alterou.

O interditando, na qualidade de requerido, pode nomear um advogado e contestar o pedido de definição de curatela. Porém, em nenhum dos autos pesquisados vimos essa situação acontecer. Após a LBI, passou a ser obrigatória a nomeação de um curador especial para defender os interesses do interditando, função atribuída a um membro da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro nas Varas pesquisadas, e que, ao responder ao pedido, contestava por negativa geral, isto é, sem adentrar ao mérito da ação. Logo, não há ninguém que defenda efetivamente a capacidade do interditando, nem mesmo o MP, que atua no procedimento como custos legis, ou seja, zela pela regularidade da aplicação da legislação.

Outro fato constatado através da pesquisa é que as curatelas parciais, decorrentes da declaração de incapacidade civil relativa, somente se concretizaram por um imperativo legal, i.e., após o advento da LBI. Antes dela, as curatelas sempre foram integrais, por incapacidade civil absoluta, ainda que a incapacidade relativa pudesse ter sido a solução adequada para vários casos. E, ante o sistema atual, qualquer dos atores judiciários poderia requerer a conversão do pedido de curatela em tomada de decisão apoiada, o que não vimos ocorrer.

Diante disso, é possível afirmar que o diagnóstico de deficiência intelectual constante dos laudos periciais se constituiu no critério definidor das interdições, ou seja, as pessoas foram declaradas civilmente incapazes em virtude de sua classificação segundo o saber médico vigente à época. Com efeito, a deficiência intelectual era compreendida como integrante dos transtornos mentais e comportamentais. O sistema de referência empregado nos laudos que acompanhavam a inicial ou o laudo pericial era a Classificação Internacional de Doenças (CID-10), que diagnosticava retardo mental[35] utilizando a graduação em leve, moderada, grave ou profunda.

Ao lado da CID-10 havia outro documento da Organização Mundial de Saúde específico para a avaliação de incapacidade da pessoa com deficiência, qual seja a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), mas que não vimos ser invocado nos processos pesquisados. Enquanto a CID-10 era restrita aos estados de saúde[36], a avaliação com base na CIF orientava fossem considerados os fatores ambientais em interação com os fatores pessoais, sociais e a condição de saúde, de modo que a avaliação da deficiência devia considerar as habilidades e aptidões do indivíduo, o contexto em que estava inserido e as oportunidades que lhe foram oferecidas. Funcionalidade, de acordo com a CIF é conceito que abrange as funções do corpo, atividades e interação ao ambiente, enquanto incapacidade se refere a deficiências, à limitação da atividade ou restrição na participação (Organização Mundial de Saúde, 2004, p. 07).

Por seu turno, o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) listava a deficiência intelectual enquanto transtorno do neurodesenvolvimento[37] e ressaltava que “(...) os prejuízos, as aptidões e as deficiências variam amplamente dentro de cada categoria diagnóstica, a atribuição de um determinado diagnóstico não indica um nível específico de prejuízo ou incapacitação.” (APA, 2013, p.24). Referindo-se aos transtornos mentais de um modo geral, a DSM-5 chamava atenção para a importância da cultura no que tange aos limites entre patologia e normalidade, na medida em que a anormalidade de um comportamento deveria ser contraposta ao contexto cultural, social e familiar do indivíduo. Assim como a CIF, não houve menção nos autos examinados à DSM-5.

Em janeiro/2022 passou a vigorar a CID-11, edição que atualizou diversas condições, incluindo a deficiência intelectual entre os distúrbios do desenvolvimento intelectual, os quais estão definidos como um grupo de condições originadas durante o período de desenvolvimento e caracterizadas por funcionamento intelectual e comportamento adaptativo significativamente abaixo da média[38]. Além disso, o documento chama a atenção para que o diagnóstico clínico seja baseado em indicadores comportamentais comparáveis. Também a DSM-5 será revista e alterada, com previsão de publicação para março/2022, e passará a designar a deficiência intelectual entre as desordens do desenvolvimento intelectual.

Quanto ao significado de (in)capacidade nas práticas judiciárias observadas com base em processos atinentes à curatela de pessoas com deficiência de duas varas de Órfãos e Sucessões da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, talvez o ponto de maior destaque seja não terem sido perceptíveis diferenças marcantes entre o processamento do auto mais antigo, datado de 1971, e o mais recente, distribuído em 2015. Em todos eles estiveram presentes a percepção de inaptidão, incurabilidade, anormalidade e doença, próprias de um modelo médico no qual a correspondência entre deficiência e patologia leva à desqualificação do sujeito disfuncional em relação à norma e, por consequência, o seu enquadramento em dinâmicas sociopolíticas distintas das dos demais.

Conclusão

Para o Direito, a incapacidade civil é encarada sempre estritamente, porque medida excepcional. No plano prático, a partir da realidade dos autos pesquisados, revelou-se que civilmente incapaz era a pessoa apontada pelo médico. Os saberes próprios do Direito não foram ativados nos processos de interdição ou definição de curatela examinados, porque subordinados àqueles da Medicina. De maneira a se poder afirmar que no curso do processo não se esteve, em verdade, a avaliar as habilidades ou a compreensão dos interditandos sobre as finalidades e consequências de relações jurídicas, mas sua subsunção ao diagnóstico de deficiência intelectual. É contraditório que o Direito tivesse de recorrer a um sistema de referência diverso ao seu para legitimar e dizer o próprio Direito. A capacidade civil é uma ficção criada no intuito de conferir inteligibilidade às operações jurídicas e, sendo assim, só faz sentido no interior do próprio Direito.

Em que pese não seja possível generalizar os dados obtidos nesta pesquisa e tomá-los como retrato da aplicação da lei concernente à capacidade civil, eles servem como parâmetro de reflexão sobre as práticas judiciárias e a necessidade de mudanças. Além disso, alertam para a distinção entre os sentidos de incapacidade para o Direito e para o saber médico, desvelando a necessidade de o Direito abrir-se ao discurso de outros saberes que também tomam a deficiência por objeto. Aqui, cumpre fazer referência não somente às áreas vinculadas ao eixo da Saúde e da Saúde Mental, como também à Educação, Psicopedagogia, mas, sobretudo, aos estudos das Ciências Sociais, os quais desvelam a significação da deficiência em função da sociedade. Reside aí a importância em colocar-se em prática a realização da perícia multidisciplinar, conforme já previsto no ordenamento processual.

De todo modo, no interior do próprio discurso jurídico, a lei mudou. É ora informada por saberes do Direito construídos sob a dialética da liberdade e da igualdade, valores dirigidos a todas as pessoas, sem exclusão. A Constituição, a CDPD e a LBI têm como fundamento a retórica dos direitos humanos e é a partir delas que se deve buscar modos de operacionalizar a plena inclusão das pessoas com deficiência intelectual numa sociedade que, durante tanto tempo, adotou práticas de exclusão. A revisão de conceitos, mecanismos e ideologias incrustadas nas práticas judiciárias é pressuposto essencial para a aplicação das mudanças legislativas, porque a adoção do modelo social e de direitos humanos pela lei consiste numa mudança de paradigma que, à longo prazo, irradiará efeitos em diferentes campos.