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Introdução

Imigrante é aquele que se depara diariamente com diversos elementos culturais que constroem a lógica de uma sociedade que não é a de sua origem. Ele está em constante encontro intercultural. A Etnopsiquiatria propõe a complementariedade entre os conhecimentos da Psicanálise e da Antropologia para a compreensão deste encontro. A cultura é compreendida como um quadro formado por diferentes propriedades significativas que fornecem ao sujeito indicadores e possibilidades de modos de agir e de pensar com coerência (Moro, 2015). Os costumes, os rituais de passagem, as formações de parentesco, a alimentação e suas formas de preparo e de compartilhamento, as manifestações artísticas, as funções sociais, as hierarquias, as formas de cuidado são também propriedades da cultura. Tudo isso determina as formas de expressão e as respostas possíveis para os eventos do curso da vida. Essas propriedades são organizadas por meio de significados transmitidos para o sujeito, os quais possibilitam a comunicação entre o mundo interno e o mundo externo (Moro, 2001; Pocreau e Martins-Borges, 2017).

A motivação que leva alguém a migrar distingue-se entre voluntária e involuntária. Essa diferenciação é fundamental, dada a sua influência no processo pré-migratório, na partida, na chegada e na integração à sociedade de destino (Jibrin, Boeira-Lodetti e Martins-Borges, 2017). Na motivação voluntária, há o desejo de deslocamento, a preparação para a partida e a possibilidade de retorno. Na motivação involuntária, ao contrário, o deslocamento geográfico não é uma escolha, mas a única possibilidade do sujeito manter-se vivo. A partida é repentina e a possibilidade de retorno muitas vezes não existe (Pocreau e Martins-Borges, 2017). Na categoria de imigração involuntária, encontram-se os refugiados.

A Síria está oficialmente em Guerra Civil desde 2011. Antes do início da guerra a população da Síria era composta por cerca de 22 milhões de habitantes; hoje o país conta com um número muito menor de habitantes. Isso se deve em parte ao movimento em massa de refugiados sírios, deslocamento sobre o qual vêm sendo divulgadas informações, principalmente em jornais e sites das organizações internacionais (Ghumma, McCord e Texas, 2016). Para as Nações Unidas (2017), essas pessoas são reconhecidas como deslocados forçados, e, mais especificamente distinguem-se entre deslocados internos, refugiados e demandantes de asilos. A população de deslocados internos é de 6,3 milhões de sírios; a de refugiados é de 5.6 milhões – a maior parte deles encontra-se na Turquia: 3,6 milhões; no Líbano: 938 mil; na Jordânia: 661 mil; no Iraque: 253 mil, e no Egito: 132 mil; a de demandantes de asilo é de 180 mil (Portail Opérationnel – UNHCR, 2019). No Brasil, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) desenvolve seus trabalhos em conjunto com o Ministério da Justiça (MJ), representado pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE). Dentre os refugiados acolhidos no Brasil, encontram-se os sírios, que representam atualmente o maior grupo de refugiados acolhidos no país – cerca de 39% (Ministério da Justiça, 2018). Eles começaram a chegar ao Brasil a partir da criação da Normativa n.17 de setembro de 2013, através da qual o CONARE, por razões humanitárias, passa a conceder visto aos refugiados sírios que se localizavam em um dos 18 países vizinhos da Síria e que desejavam se refugiar no Brasil (Calegari e Baeninger, 2014; Godoy, 2014; Resolução Normativa N. 17, 2013). Com a criação dessa resolução normativa, o Brasil passou a representar o país da América Latina que mais recebe refugiados sírios (Figueiredo et Lunardi, 2016). Florianópolis foi uma das cidades que recebeu refugiados sírios. Segundo Figueiredo e Lunardi (2016), os refugiados sírios que haviam chegado à esta cidade até o ano de 2016 eram, em sua maioria, homens jovens e solteiros. Haviam poucas mulheres – cerca de vinte – e doze crianças. Entretanto, em geral, a imigração de pessoas originárias do Oriente Médio no Brasil, e em Florianópolis, não é um fenômeno inédito. Em nível nacional, foi a partir do início do século 20 que muitos cristãos árabes fugiram para o Brasil motivados por questões de perseguição religiosa. Esses imigrantes construíram um importante legado no território brasileiro e, sobretudo, na cidade de São Paulo. No que se refere à esta cidade, Fortunato (2019) enfatiza a existência de diferentes comércios, ruas, praças, hospitais, monumentos, clubes que possuem nomes sírios e libaneses que fazem referência a importantes protagonistas da história de imigração árabe no Brasil. Quanto ao Estado de Santa Catarina, Figueiredo e Lunardi (2016) apontam que, apesar dos poucos registros históricos, é principalmente no meio do século 20 e nas primeiras décadas do século 21 que houve uma maior presença de comunidades árabes no comércio do stado. Em Florianópolis, por exemplo, as autoras ressaltam que a criação da Mesquita e Centro Islâmico na década de 1990 representa um importante marco do aumento de pessoas árabes e muçulmanas na cidade. Esse breve histórico se faz necessário em função das importantes marcas históricas e culturais existentes na sociedade brasileira que produzem um efeito na experiência dos refugiados sírios acolhidos atualmente no Brasil.

Algumas pessoas se deslocam porque querem se deslocar; outras, como no caso dos refugiados, se deslocam porque precisam se deslocar para se manterem vivas. A chegada dos refugiados sírios vítimas da guerra civil de 2011 é recente no Brasil, e as especificidades do processo imigratório dessa população são pouco conhecidas. Dado que o desconhecimento consiste em um dos maiores dificultadores à integração, o presente artigo é parte de uma dissertação de mestrado (Boiera Lodetti, 2018) e tem como objetivo principal apresentar os resultados de uma pesquisa qualitativa acerca das significações atribuídas ao processo migratório por refugiados sírios acolhidos no Brasil que moram em Florianópolis e dos fatores de risco e de proteção relacionados aos contextos pré e pós-migratórios.

Método

Contexto e participantes

Participaram desta pesquisa qualitativa descritiva e exploratória refugiados sírios com residência no Brasil, com mais de 18 anos de idade, e residentes na mesorregião da Grande Florianópolis. A definição do número de participantes baseou-se, inicialmente, nos estudos de Fontanella, Luchesi, Saidel, Ricas e Turato (2011), que defendem como 12 o número de membros da amostragem necessária para alcançar uma saturação de dados. Entretanto, ante a constatação de certa homogeneidade entre os participantes – havia somente homens – continuou-se a coleta de dados com o objetivo de recrutar mais mulheres sírias para a pesquisa. O método bola-de-neve (snowbal)l foi utilizado.

Instrumentos

Os instrumentos previstos para a coleta de dados foram, respectivamente, uma entrevista semiestruturada e um formulário sociodemográfico intercultural. A entrevista semiestruturada, composta por um roteiro de perguntas, possibilitou a caracterização do processo migratório, a identificação dos fatores de risco pré e pós-migratórios e a identificação dos fatores de proteção pré e pós-migratórios dos participantes que correspondiam aos critérios de inclusão supracitados. O formulário sociodemográfico intercultural foi utilizado com a finalidade principal de caracterização da amostra por meio da obtenção de dados que levem em conta especificidades da situação migratória. Ele é composto por 40 questões e contém perguntas sociodemográficas distribuídas em seis categorias: Dados pessoais, Escolaridade e ocupação, Renda, Moradia, Utilização do SUS e do SUAS, Religião, Língua e Dados sobre a imigração (Pocreau e Martins-Borges, 2017).

Procedimentos

O primeiro encontro com os participantes foi contato presencial – e/ou telefônico, nos casos em que se utilizou a técnica snowball. Primeiramente foi apresentado um breve resumo da pesquisa e, nos casos de concordância na participação, um encontro foi agendado para um maior esclarecimento dos objetivos da pesquisa. O local foi definido pelas preferências do participante. Com o consentimento e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), a entrevista foi registrada por meio de um gravador de áudio. Após a finalização da entrevista semiestruturada, a pesquisadora realizou oralmente as perguntas previstas no formulário sociodemográfico intercultural e preencheu-o diante do entrevistado. O presente estudo faz parte do projeto guarda-chuva Dimensões Psicossociais do Acolhimento de Imigrantes e Refugiados em Florianópolis, aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Análise de dados

A análise de dados foi feita por análise de conteúdo, técnica que procura analisar os significados dos conteúdos trazidos pelos participantes. O conteúdo dos áudios das entrevistas semiestruturadas foi transcrito de forma exaustiva; após, fez-se a primeira leitura, flutuante, do conteúdo completo e, posteriormente, redigiu-se uma breve apresentação de cada participante. Outra leitura foi feita com marcadores que sintetizavam o conteúdo lido. Iniciou-se a construção de um esquema de codificação baseado nos objetivos específicos desta pesquisa. Obteve-se um esquema composto de três níveis: as categorias (referentes aos objetivos específicos da pesquisa), as subcategorias e as unidades de análise. Para que se pudesse traçar um perfil dos participantes, os dados contidos nas respostas do Formulário Sociodemográfico Intercultural– com dados quantitativos e qualitativos – foram organizados no Excel e depois tabelados.

Resultados e discussão

Este estudo teve a participação de 13 refugiados sírios: 11 homens e 2 mulheres com idades entre 20 e 42 anos – a maior parte deles (10) com idades entre 20 e 30 anos. As cidades de origem dos participantes são Damasco (6), Douma (5), Mouadamyet Al Sham (1) e Homs (1). Os participantes saíram de suas cidades em 2011 (4), 2012 (7) e 2013 (2) e chegaram ao Brasil em 2014 (8) e 2015 (5). Assim, o tempo em que permaneceram em deslocamento foi entre 1 e 4 anos – a maior parte deles (7) entre 2 e 4 anos de deslocamento em países vizinhos antes da chegada ao Brasil. Com o intuito de responder aos objetivos deste artigo – coerentes igualmente com os objetivos específicos da pesquisa – os Significados atribuídos ao processo migratório, os Fatores de risco e os Fatores de proteção, foram organizados em 3 categorias de análise (tabela 1).

Tabela 1

Categorias, subcategorias e unidades de análise

Categorias, subcategorias e unidades de análise

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Significados atribuídos ao processo migratório

No que se refere aos significados que os participantes atribuíram às diferentes etapas do processo migratório, destacaram-se 4 etapas: a Síria antes da guerra, o contexto de guerra na Síria, os deslocamentos aos/nos países vizinhos e, por último, a chegada ao Brasil.

Na etapa da Síria antes da guerra foi possível de apreender aspectos sobre a descrição física das cidades de origem dos participantes e sobre os significados relacionados à organização familiar e social antes do início da guerra. Ainda que esta etapa não faça parte do contexto pré-migratório – uma vez que formalmente ele se inicia somente a partir da decisão de imigrar (Fronteau, 2001) –, ela foi essencial para visualizar o contexto em que eles viviam antes do início da guerra. Dentre estes significados, destacaram-se uma forma de organização coesa de pertencimento ao grupo, bem como funções que se diferem entre homens e mulheres nos contextos familiares. Esta unidade temática denotou também distintos elementos culturais referentes à alimentação, às práticas, aos hábitos que compõem, de forma dinâmica, uma lógica, uma forma de organização e funcionamento de uma sociedade, o que possibilita seus sujeitos a fazerem relações de sentido com as experiências da vida (Moro, 2001).

Quanto à etapa do contexto de guerra na Síria, ela foi representada por exposição à violência extrema e contínua, por perdas e desaparecimentos e pelo momento em que os participantes tomaram a decisão de partir – primeiramente dentro da própria Síria e, em seguida, para o exterior do país. Nesse sentido, coloca-se em evidência as seguintes falas:

Todo tempo você está lá e tem “bum, bum, bum”, todo tempo você escuta isso. É sempre perigoso, sempre.

Participante 13

Porque na verdade não é deixar o meu país, é deixar minha cultura, minha alma, também bem complicado. Não é fácil nada. Você conhece quando, por exemplo, tem apartamento, por exemplo, tem alguém que diz pra você que o apartamento em 3 minutos vai fogo. [...] Ou você perde a vida de você ou você precisa sair. Mesma coisa... Ou você morreu ou você sair. Eu sair do meu apartamento de Douma, quando saí era quase 24 horas e morreu uma cidade inteira.

Participante 12

Percebe-se nos trechos acima um contexto perigoso e ameaçador, o que pode trazer importantes efeitos traumáticos para os refugiados (Fronteau, 2001). Além disso, o trecho de P13 explicita claramente os motivos pelos quais a imigração de sírios pode ser considerada forçada, ou seja, sem que haja um desejo de deixar o país. Definitivamente eles não puderam preparar essa saída, projetarem-se no futuro em um outro lugar (Fronteau, 2001) e ainda precisaram lidar com lembranças das vivências em um contexto violento, em meio a inúmeras perdas, e com importante potencial traumático (Kira, Shuwiekh, Rice, Ibraheem e Aljakoub, 2017; Dow, 2011). Esses elementos que constituem o deslocamento forçado com experiências de perdas e vivências traumáticas podem trazer importantes impactos psicológicos (Alemi, James, Siddiq e Montgomery, 2015; Pocreau et Martins-Borges 2017; Briggs, 2011; Dow, 2011). Acrescenta-se a isso um grande número de perdas e desaparecimentos existente entre os familiares e pessoas próximas aos participantes.

Na etapa dos deslocamentos aos/nos países vizinhos, foi possível perceber a ocorrência de muitos movimentos, tanto dentro da própria Síria quanto nos países vizinhos antes da chegada ao Brasil. No que se refere aos países vizinhos, observou-se que os participantes estiveram em deslocamento na Líbia (Tripoli), na Turquia (Istambul), no Líbano (Beirute e Sûr), na Jordânia (Amman e Irbid), no Egito (Cairo e Alexandria), nos Emirados Árabes Unidos (Abudabi) e na Arábia Saudita (Ryad). Além da diversidade de países, observou-se também a ocorrência de múltiplos deslocamentos – realidade igualmente percebida em estudos com refugiados sírios que estão em outros países (Ahmed, Bowen e Xin Feng, 2017; Hassan, Kirmayer e Ventevogel, 2016). Ao encontro disso, dados oficiais do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados publicou em seu portal operacional online que, até agosto de 2019, a maior parte dos refugiados sírios encontravam-se na Turquia, aproximadamente 3,6 milhões de pessoas; no Líbano, aproximadamente 1 milhão de pessoas; na Jordânia, aproximadamente 660 mil pessoas; no Iraque, aproximadamente 250 mil pessoas; no Egito, aproximadamente 130 mil pessoas; e em outros países do Norte da África, aproximadamente 35 mil pessoas (Portail Opérationnel, 2019).

Durante esta etapa de deslocamentos muitos participantes acabaram se separando de suas famílias e foi possível constatar que eles têm familiares e pessoas próximas espalhadas por muitos lugares do mundo: Zâmbia, Malásia, Síria, Egito, Turquia, Líbia, Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Bélgica, Arábia Saudita, Dinamarca, China, Suécia, Suíça. Além de estarem separados da família, também foi frequente a reexposição à violência durante o período de deslocamento. Hassan, Kirmayer e Ventevogel (2016) destacam as consequências derivadas da exposição à violência e ao deslocamento como um dos três principais elementos relacionados aos problemas de saúde mental de refugiados sírios. Diante da dificuldade – ou mesmo da impossibilidade – de permanecerem onde estavam e do fechamento das fronteiras da Europa na recepção de refugiados sírios, o Brasil surgiu como uma alternativa de partida. A possibilidade “ir para o Brasil” encontra respaldo na Resolução Normativa 17, aprovada em setembro de 2013 pelo governo brasileiro e disserta sobre vistos por razões humanitárias aos sírios. Tal normativa facilitou o processo de entrada no Brasil para pessoas vítimas da guerra da Síria (Rodrigues, Sala e Siqueira, 2017; Resolução Normativa N.17, 2013;). Muitos participantes fizeram referência ao Brasil como única alternativa aberta e possível, o que é coerente com o observado por Calegari e Baeninger (2014) nas entrevistas com refugiados sírios da cidade de São Paulo.

Assim, no que se refere à etapa da chegada ao Brasil, todos os participantes o fizeram por via aérea – aeroporto de Guarulhos. Alguns ficaram em São Paulo por alguns meses antes de irem para Florianópolis e outros foram diretamente para Florianópolis. A motivação da vinda pra Florianópolis em alguns casos deu-se baseada em comentários de pessoas da rede dos participantes que na cidade haveria mais possibilidades de trabalho e, em outros casos, deu-se pela existência anterior de conterrâneos e familiares na região. Nesse sentido, Figueiredo e Lunardi (2016) observaram que refugiados sírios estabelecidos em Florianópolis em 2016 trabalhavam no comércio e em restaurantes pertencentes a imigrantes árabes – cristão ou muçulmanos – já estabelecidos da região em ondas imigratórias anteriores. Quanto à experiência de refugiados sírios na região do ABC paulista, Silva, Perazzo e Covarrubias (2020), também constataram a importante influência dos fluxos migratórios anteriores das comunidades árabes para o Brasil na obtenção do primeiro trabalho. Após a chegada física dos participantes – ao Brasil e a Florianópolis – eles se deparam com a ambientação do novo local de moradia (Fronteau, 2001). Compreendendo a cultura enquanto conjunto de símbolos que atuam como uma ponte entre o mundo interno e o mundo externo do sujeito e que possibilitam modos de ser e de fazer (Pocreau e Martins-Borges, 2017), os participantes aterrissaram em outro universo cultural: o Brasil. Esse quadro de referências culturais entrou em choque com o que eles observaram e viveram neste outro mundo brasileiro. Dentre os elementos culturais de divergência entre as culturas brasileira e síria, os participantes nomearam as vestimentas e a maneira de exibição do corpo. Foi evocado também uma sensação, por parte dos participantes, de desorientação e de inadequação quanto às referências culturais originárias deles (Fronteau, 2001). Isso pode ser explicado pelo fato de que o sistema cultural dos participantes – composto por diferentes elementos que fornecem ao sujeito indicações de como agir e pensar de forma coerente (Moro, 2015) – é naturalmente falho neste outro contexto cultural.

Fatores de risco

A experiência em si como imigrante/refugiado já pode se configurar um importante fator de risco à saúde mental (Briggs, 2011; Dow, 2011). Entretanto, existem também outros fatores de risco que podem agravar um estado de vulnerabilidade psíquica ou torná-lo mais duradouro. Esses elementos foram percebidos na análise de dados e aparecem na categoria Fatores de risco, decomposta nas subcategorias experiência do imigrante/refugiado, mudanças psicossociais pós-imigração, ameaças em torno da identidade cultural e aspectos sociais no Brasil.

Dentre as unidades de análise encontradas na subcategoria experiência do imigrante/refugiado, destacaram-se a vivência na guerra, os diversos deslocamentos, o risco do retorno. Além disso, acrescenta-se como fator de risco a nacionalidade sírio-palestina. A vivência na guerra, marcada pelas múltiplas perdas – materiais e simbólicas – e pela não-voluntariedade da imigração perpassa fortemente por todas as narrativas dos participantes. A guerra levou ao deslocamento forçado e trouxe inúmeros impactos, tornando-se um importante fator de risco à saúde mental (Alemi et al, 2015; Briggs, 2011; Chung, AlQarni, Muhairi e Mitchell, 2017; Dow, 2011; Pocreau et Martins-Borges, 2017). Os diversos deslocamentos prolongaram a condição de provisoriedade em suas vidas e tempo desses deslocamentos foi variável e a média foi de 2 anos e meio entre os 13 participantes. No que concerne aos países e cidades por onde eles passaram, verificou-se 8 tipos de trajetos realizados pelos participantes, como destacado na tabela 2.

Tabela 2

Percurso durante os deslocamentos

Percurso durante os deslocamentos

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Como já explorado na categoria de Significados atribuídos ao processo migratório, muitos participantes foram reexpostos à violência durante esse deslocamento, agravando ainda mais elementos constituintes de risco à saúde mental. Outra característica observada na amostra foi o fato de que 4 entre os 13 participantes possuem em seus documentos de identidade escrito “nacionalidade: Sírio-palestino”. Isso se deve ao fato de que a Síria acolheu, a partir da Guerra da Libertação entre árabes e israelenses, 1948-1949, muitos dos 750 mil refugiados palestinos que foram expulsos de seus territórios (Nasser, 2013). Os participantes representam a segunda ou terceira geração desses refugiados palestinos acolhidos na Síria. Outro fator constituinte de risco foi a dificuldade ou impossibilidade de retorno para a Síria.

Na chegada ao Brasil os participantes depararam-se com muitas mudanças psicossociais pós-imigração, com destaque para aquelas concernentes à Organização familiar e Perdas de funções sociais. As perdas e as separações familiares causadas pela guerra exigiu de muitas famílias uma reorganização em torno da rede familiar e das funções de cada membro, configurando estressores que podem gerar importantes impactos psicológicos (Dow, 2011). Foi possível perceber dentre os participantes a interrupção dos planos no contexto profissional e estudantil e a frustração ao ocupar um lugar não desejado, um lugar imprevisto. A perda de uma função social é estudada por diferentes autores que chamam a atenção para este elemento como um importante fator relacionado à saúde e bem-estar dos refugiados (Smeekes, Verkuyten, Celebi, Acarturk e Onkun, 2017; Wells, Zachary, Abo-Hilal, Hassan e Lawsin, 2016). Quanto à necessidade de aprendizagem de uma nova língua, observou-se que, no refere à compreensão (escrita e oral) e expressão (escrita e oral) dos participantes antes da imigração, todos os 13 participantes tinham “Nenhum” conhecimento da Língua Portuguesa antes da imigração. Muitos deles relataram não ter frequentado cursos de português por conta da necessidade de urgência na procura de trabalho e da falta de oferta de cursos quando chegaram aqui. Assim, a maioria deles aprendeu o idioma no dia a dia do trabalho. Segundo o estudo de Fortunato (2019), com 13 refugiados sírios estabelecidos no município de São Paulo e no ABC paulista, a falta de domínio da língua portuguesa foi considerada a maior dificuldade relacionada à adaptação local dos participantes da sua pesquisa. Essa dificuldade se associava diretamente ao uso de serviços públicos, ao trabalho e à criação de relações com a população local.

Todas essas mudanças psicossociais que acompanharam a experiência migratória trouxeram também ameaças em torno da identidade cultural síria, o que foi percebido principalmente no Contato com outros sírios e na grande preocupação da Transmissão geracional dos costumes, hábitos e rituais. No que se refere ao contato com outros sírios, percebeu-se um sentimento de desconfiança herdado da guerra. Se inicialmente o contato com compatriotas poderia representar uma rede de apoio – forma de manter a continuidade da identidade social (Smeekes et al, 2017) –, no caso de alguns participantes, configurou-se um fator de risco. A guerra da Síria conta atualmente com o envolvimento de muitos grupos. Essa pluralidade desencadeia um sentimento de ameaça entre os próprios sírios e os participantes identificaram a persistência dos efeitos desse sentimento de desconfiança igualmente aqui no Brasil. Nesse sentido, Silva et al (2020) identificaram uma divergência de posicionamentos quanto ao que se passa na Síria dentro de uma mesma comunidade de refugiados sírios estabelecidos no ABC paulista. Outro elemento frequente nas entrevistas foi a grande preocupação dos participantes na Transmissão geracional da cultura síria. Percebeu-se que eles se sentem bastante ameaçados quanto à possibilidade de desaparecimento de elementos da cultura síria (língua árabe e religião, por exemplo) pelo fato de estarem no Brasil. O estudo de Rigamonte, Rodrigues e Marchese (2020), com refugiados sírios residentes em São Paulo, destacou igualmente a presença de uma ameaça de perda cultural. Os participantes desta pesquisa afirmaram manter os rituais religiosos e culturais, entretanto, enfatizaram o impacto negativo em determinados rituais, como o Ramadã, pelo fato de o realizarem no Brasil, ou seja, fora do contexto cultural de origem dos participantes.

Por fim, o último fator de risco a destacar faz referência aos aspectos sociais no Brasil, que foram representados principalmente pela Falta de serviço e pela Discriminação que viveram aqui. Quanto à falta de serviços, os participantes enfatizaram uma lacuna no âmbito de serviços de assistência social e escolaridade – como auxílios de alimentação, aulas de português – e uma falta de serviços de imigração e de acolhimento ainda na chegada ao Brasil, nas primeiras horas. Essa carência de serviços também foi apontada no estudo de Fortunato (2019) com refugiados sírios estabelecidos no município de São Paulo e no ABC paulista. Quanto às experiências de discriminação, eles fizeram referência a vivências durante todas as etapas do processo migratório, com ênfase para aquelas durante os múltiplos deslocamentos e no Brasil. Eles consideram a discriminação elemento estressor rotineiro que vivenciam no Brasil. Nessa mesma direção, o estudo de Rigamonte et al (2020) apontou que o preconceito e o estigma de “terroristas” tornaram-se uma constante na vida dos refugiados sírios participantes da pesquisa. A discriminação é igualmente considerada como um fator de risco à saúde mental dos refugiados (Kira et al, 2017). Diferentes estudos apontam o impacto negativo da discriminação e do racismo sofridos por refugiados sob o processo de instalação e integração em uma nova sociedade (Drolet e Moorthi, 2018; Papazian-Zohrabian, Mamprin e Lamire, 2018; Walton-Roberts, Veronis, Wayland, Dam e Cullen, 2019).

Embora os elementos elencados anteriormente se configurem como fatores de risco e, por isso, tenham sido agravantes no que se refere ao estado de vulnerabilidade psíquica, foram identificados também recursos que serviram, e ainda servem, como fatores de proteção para os participantes da pesquisa.

Fatores de proteção

Os fatores de proteção foram elencados em três elementos: manutenção de vínculos de referência; elementos da cultura síria; e experiências no país de acolhimento. No que concerne à manutenção de vínculos de referência, percebeu-se a importância do contato virtual com a família, da presença em Grupo de mulheres sírias, na região de Florianópolis, e da Instituição religiosa como três referências de suporte e proteção para os participantes. Essas referências estão relacionadas aos laços significativos constituintes da identidade dos participantes, os quais podem ter sofrido rupturas pelo processo migratório (Pocreau e Martins-Borges, 2017). As famílias e as pessoas de referência dos participantes se encontram espalhadas pelos vários continentes do planeta, e o contato virtual tornou-se uma forma de manutenção do vínculo. Ferramentas como Skype, WhatsApp, Facebook e Instagram foram frequentemente citadas. Outra forma de manutenção dos vínculos de referência apareceu nas entrevistas com as 2 mulheres participantes desta pesquisa. Elas citaram suas respectivas participações em um Grupo de mulheres sírias existente na cidade de Florianópolis, o que pode ser compreendido como um fator de proteção para a saúde mental de refugiados, pois, por meio do grupo, seus membros podem dar continuidade à manutenção de uma identidade social existente antes do processo migratório (Smeeks et al, 2017). Outra maneira de manutenção de vínculos apareceu pela Instituição religiosa. Todos participantes se declararam muçulmanos e tinham como espaço religioso de referência a mesquita. Este espaço representou, para muitos deles, o primeiro lugar de referência na chegada ao Brasil. Foi um lugar de suporte, em que eles dormiram, alimentaram-se e, por fim, construíram a primeira rede de contato que, em seguida, os permitiu conseguir o primeiro trabalho. Além disso, na mesquita eles encontraram pessoas com quem puderam se comunicar em árabe.

Outros fatores de proteção foram encontrados na subcategoria elementos da cultura síria, em que se destacaram as unidades temáticas Alimentação e Religião. A Alimentação, ocupou um espaço muito importante durante as entrevistas, com muita riqueza e diversidade. Assim, destaca-se a fala:

Todos os tipos de comida maravilhoso que minha mãe fez. Uma comida tipo, não é igual, mas tipo espinafre com lorria, que é da Síria, porque eu viajei todos os países e não achei. É uma folha, mas parecida de espinafre, mas outro gosto, bem diferente. Mas parecido só na forma. Esquenta com arroz e o limão em cima, ela com carne de frango ou carne de boi [...] Não, não consigo fazer igual. Faço algo perto. Mais lentilha com arroz e cebola em cima, cebola frita, com salada.

Participante 7

As receitas preferidas dos participantes refletem também a agricultura e os hábitos da Síria: repleta de vegetais, frutas e legumes. Brightwell (2015) afirma que todo o ritual em torno da comida – ingredientes, utensílios, preparo – reproduzem lembranças culinárias promovedoras de suporte nas relações sociais e emocionais; tal suporte é essencial para a produção de sentidos de identidade, de casa e de pertencimento. Nesse viés, a alimentação se relaciona diretamente com os vínculos de origem, de pertencimento; e a reprodução desse hábito um importante fator de proteção à saúde mental.

A Religião também ocupou espaço importante enquanto fator de proteção e se mostrou relevante em todas as etapas do processo migratório. Os participantes mencionam a força da proteção de Deus e a realização de alguns rituais, como a leitura do alcorão, a oração, a utilização de um tapete para rezar, a ida à mesquita nas sextas-feiras, o ritual de jejum do Ramadã. Os estudos de Ahmed, Bowen e Xin Feng (2017) e Hassan, Kirmayer e Ventevogel (2016) afirmam que uma maneira utilizada pelos muçulmanos sírios para diminuir o estresse é a oração, a leitura do Alcorão Sagrado, a participação em cerimônias religiosas, como elementos de proteção, de força e de apoio. Nathan (1998) destaca que para a Etnopsiquiatria é essencial a compreensão dos objetos terapêuticos de cada cultura, tais como estes destacados na religião muçulmana. Para tratar o sofrimento do outro, é imprescindível acessar a história desses objetos terapêuticos – como foram inventados e fabricados pelos grupos humanos, tais como as orações, os cantos, os objetos materiais e de que forma eles exercem funções terapêuticas.

Por fim, percebeu-se que algumas experiências no país de acolhimento, como os Planos profissionais e o Contato com brasileiros, consistiram em duas unidades temáticas recorrentemente mencionadas pelos participantes. Os Planos profissionais foram abordados em primeiro lugar por quase todos os participantes como resposta a uma pergunta sobre como eles imaginam o futuro em 5 anos. Eles evocaram a possibilidade da continuidade de um plano de estudo e/ou trabalho que eles já tinham na Síria. Também apresentam projeções futuras desse plano em terras brasileiras, ou seja, a possibilidade de permanência e de reconstrução de seus planos em outro lugar. Observou-se uma força que os coloca em movimento, uma força que torna possível a continuidade de si mesmo em outro lugar. Já o Contato com brasileiros foi apontado pelos participantes enquanto relações de troca e de ajuda de acesso a outras redes de apoio e de serviços no Brasil. Nesse sentido, enfatiza-se a reflexão acerca da implicação da sociedade brasileira no processo de acolhimento e integração dos refugiados sírios. Tal acolhimento e integração perpassam igualmente a criação de serviços ofertados especialmente para imigrantes que utilizem modelos que privilegiam o uso de elementos culturais como importante mecanismo de acesso ao sofrimento e às formas de tratamento durante as intervenções (Hassan, Kirmayer e Ventevogel, 2016), tal como propõe a Etnopsiquiatria e abordagens interculturais que se baseiam nas etapas de descentração, de descoberta do quadro de referências do outro e de negociação/mediação (Cohen-Émerique, 2011).

Considerações finais

Em conclusão, o contato com os participantes possibilitou compreender a relação entre os significados atribuídos à vivência do processo migratório forçado. Ao se aprofundar no que se encontra na base desses significados, foram identificados fatores de risco que podem levar a um estado de vulnerabilidade psíquica e/ou agravar um sofrimento já existente. No entanto, fatores de proteção que podem abrandar esse sofrimento e/ou manter estratégias de enfrentamento foram igualmente identificados.

Quanto aos significados atribuídos ao processo migratório, constatou-se diferentes elementos de todo o percurso que fazem referência ao contexto de guerra que desencadeou a imigração forçada; que prolongou a precariedade e a exposição à violência nos múltiplos deslocamentos nos países vizinhos à Síria; que os levaram ao Brasil e à Florianópolis. No que se refere aos fatores de risco, destaca-se a experiência em si enquanto imigrante/refugiado, os múltiplos deslocamentos, o fato de alguns terem origem palestina, as barreiras linguísticas no Brasil, ameaças em torno da identidade cultural síria, a falta de políticas de acolhimento, e episódios de discriminação vividos. Quanto aos fatores de risco verificou-se a manutenção com os vínculos de referência pelo contato virtual com a família, existência de um grupo de mulheres síria em Florianópolis e importância da instituição religiosa; alguns elementos da cultura síria, como alimentação e religião; e, por fim, experiências no país de acolhimento, como os planos profissionais dos participantes e o contato de alguns deles com brasileiros.

Dentre os limites encontrados nesta pesquisa, destaca-se principalmente a dificuldade no acesso às mulheres sírias refugiadas em Florianópolis. Essa dificuldade, embora possa estar relacionada ao fato de que a maioria dos refugiados sírios residentes em Florianópolis são homens jovens e solteiros (Figueiredo et Lunardi, 2016), também abre brecha para outras hipóteses. Dentre elas, destaca-se o silenciamento que muitas vezes é desencadeado por experiências traumatizantes, como os eventos da guerra no caso dos refugiados sírios. Este silenciamento foi observado por Silva et al (2020) entre os refugiados sírios residentes no ABC paulista. Além disso, considerando que a maior parte de refugiados sírios que estão em Florianópolis pertence à religião islâmica, futuras pesquisas com refugiados sírios que abordem diferenças de gênero e que discutam a posição ocupada pelas mulheres em culturas não-ocidentais são fortemente recomendadas.